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O Programa Arquitetônico como Enteléquia do Projeto

Isidro Suarez, arquiteto

Tradução de Álvaro Letelier Hidalgo

PARTE 1

Tentarei desenvolver minhas ideias sobre o Programa Arquitetural da maneira mais breve possível. Se vocês perceberem nas minhas expressões um tom categórico não pensem que se trata de uma posição dogmática, mas se, apesar de tudo, perceberem uma posição não “empiricista”, não condutivista, mas crítica, atribuam-na a minha convicção de que, sem fundamento ontológico não se pode abordar a arte como uma disciplina válida em si mesma, ou seja, sem metafísica não há possibilidade racional de apreender a arte como uma criação humana válida para outros seres humanos.

Assim, começando, declaro que concebo a arquitetura como uma das principais artes e o programa como –repetindo a Borchers– “aquilo que faz um projeto cair em Arquitetura e não em outro lugar”. (1)

Este propósito explícito que deve ser cumprido pelo programa de fazer que um projeto fique na arquitetura e não em outra parte nos faz perguntar: qual é a outra parte?

A outra parte pode ser engenharia, propaganda política, comercial ou religiosa, cenografia, psicologia social, ilustração escolar, etc….

E por que esse papel direcional para o programa? Não poderia ser o mesmo projeto que, por si só, se definisse assim mesmo como um projeto de arquitetura?

Vejamos:

O projeto, sendo uma planta da realidade, é um modelo da realidade, então o projeto é uma realidade interposta, porque o projeto é apenas algo quando é uma planta da realidade.

Planta na qual são configurados os estados das coisas cuja totalidade representa os fatos arquitetônicos. (2)

O conjunto dos fatos arquitetônicos pertence a uma lista variável não-fechada, como uma lista telefónica cujos assinantes estão aparecendo e desaparecendo continuamente, como diria Poincaré. Assim por exemplo, a água na Alhambra é um fato arquitetônico, enquanto que no Mosteiro do Escorial não é um fato arquitetônico, nesse sentido a Alhambra seria úmida e o Mosteiro do Escorial seco.

Esta planta deve estar relacionada com a realidade, esta relação é duplamente real: a realidade da planta e a realidade da realidade. Aqui neste segundo membro entra o fenômeno histórico dos usos e costumes que ao cessar ou transformar-se não invalidam o primeiro membro, sendo que, embora hoje o Parthenon não recolhe danças religiosas da sua época, não deixa de ser uma planta real que atua como obra de arte pelo poder de sua construção simbólica.

Sendo o projeto uma planta da realidade carregada com esta dupla realidade, requer que a organização de seus elementos constituintes (que são ideias, definições, leis, teoremas, procedimentos), esteja unificada em sua concepção para esta ação em duas frentes. É para aqui que o programa aponta, para a tarefa artística e conceitual pré-composicional que orienta o projeto.

Essa tarefa de elucidação previa realizada pelo programa é ampla, radical e múltipla.

Em cada arquiteto, esta ação do programa acontece de uma forma mais ou menos implícita ou explicita. O que eu tenho feito é ir a uma maior especificidade e, naturalmente, consegui obter um corpo de proposições que eu acredito, tem alguma importância para o trabalho do arquiteto.

Sem saber, não há arte nem arquitetura, também não há criatividade.

Somos obrigados a abordar o campo da pesquisa das ideias e conceitos que informam outras disciplinas que vão dar em arquitetura: tais como o conhecimento matemático, físico, biológico, filosófico e naturalmente artístico (seja música, pintura, escultura, cinema…)

E esta é a rota que eu segui ao longo das minhas aulas sobre programa arquitetônico.

Começaremos por distinguir o termo de programa e vamos explicá-lo para que não seja confundido com o uso do mesmo termo que incorporou o trabalho dos computadores.

Para estes, o programa é uma instrução, pois denominasse programa à lista sequencial de instruções aritméticas e lógicas, expressadas em linguagem compreensível pelo computador, para que este execute automaticamente o processo que vai entregar o resultado.

O contrário, para a tarefa da arquitetura, o programa é algo muito mais rico e complexo -resgatando o velho termo usado pelos arquitetos e estudantes de arquitetura antes da era dos computadores de programa- programa não é elemento de uma rotina operativa, é uma criação conceitual, é o primeiro esboço da configuração do projeto, apontando para o partido geral.

Em primeiro lugar, ele aparece para nós como um pedido para a constituição do projeto.

Em segundo lugar, essa constituição do projeto, para ser, deve ser um estudo.

Em terceiro lugar, este estudo envolve basicamente uma análise que reúne vários sistemas lógicos constituintes.

O programa, como um cálculo lógico e como sistema, compõe-se da enumeração de exigências, que é o alfabeto, as condições a cumprir, que são as regras de formação, e as conexões entre essas condições, que são as regras de transformação. Como sabemos, alfabeto, regras de formação e regras de transformação, são os três elementos que constituem o cálculo lógico como um sistema, e são definidos da seguinte forma: alfabeto, conjunto de símbolos elementares; regras de formação, que indicam como os símbolos elementares podem ser combinados em formações compósitas; regras de transformação que indicam como se pode passar de uma combinação de símbolos para outra combinação, isto é, de uma forma lógica a outra, o que equivale a transformar à primeira (análoga a estas regras são os princípios sintáticos da concatenação de orações). (3)

Mas o programa transcende o cálculo lógico para decidir possibilidades reais, que não são obtidas através de fórmulas bem formadas ou teoremas, alcançados de acordo com as regras de transformação.

Esta transcendência é o núcleo do programa. Por que o programa transcende o cálculo? Porque a decisão é fruto do arquiteto como “sentinte” da realidade que enfrenta, pois não decide o cálculo ou cálculos, mas a decisão está implícita ou explícita no programa.

A decisão é uma operação própria do arquiteto, como o comando no militar.

Essa decisão caracteriza e fundamentalmente diferencia o arquiteto dos técnicos e dos tecnocratas sociais, que trabalham em terrenos adjacentes.

E por que a decisão é fundamental do arquiteto?

Porque o arquiteto trabalha com a vida humana, protege-a, é o criador de novas formas de vida ou o destruidor delas, é um operador cuja ação é eminentemente séria e, portanto, carrega um peso ético inevitável. Em seguida, o programa, como estudo, elabora o cálculo lógico como um sistema e como decisão o transcende, então nós temos em quarto lugar, a decisão do arquiteto no programa e o caracteriza como Enteléquia do Projeto, porque captura a proposição com sentido.

Em resumo, temos definido o programa como uma criação conceitual, que elabora o cálculo ou cálculos lógicos dos sistemas que inerentes ao projeto e conclui em uma proposição com sentido, que o constitui na Enteléquia do Projeto.

Em resumo: Programa = Sistema de Sistemas (Cálculo Lógico) + Proposição com Sentido = Enteléquia do Projeto.

A) A PROPOSIÇÃO COM SENTIDO

As proposições com sentido são aquelas que apontam à mensagem do programa para o projeto. O significado é a forma, o modo como o objeto é “dado” (de acordo com a distinção fregeana entre significado e significado). (4)

Um exemplo de capacidade de programa é a criação pela cultura inglesa moderna das regras e regulamentos do futebol, e dentro deste exemplo, eu farei com que seja sensível o que seria o “sentido” que não aparece no cálculo lógico que o circunscreve.

É óbvio para aqueles que o praticam ou assistem-no, que o “sentido” muda entre jogar, chutar uma bola ao longo de um campo de futebol, se for jogar entre cinco jogadores de cada lado, (Futebol baby) ou entre 11 jogadores de cada lado (Futebol) e mesmo assim o alfabeto, os jogadores, as regras de formação, os movimentos destes com a bola, as regras de transformação, as conversões do jogo causada pela posição da bola, são basicamente os mesmos. Logo o que dá o “sentido” não são as regras de transformação no exemplo: o “sentido” –repito– transcende o cálculo lógico; portanto, mesmo tendo feito o cálculo lógico dos elementos de um programa isto não é suficiente, porque uma vez feito o programa não está na arquitetura, pois a Proposição com Sentido, que faz o Programa como Enteléquia do Projeto, não foi tocada (este é um defeito ontológico do sistema de Alexander, e por este motivo os seus pobres resultados). (5)

Com o programa já construído conseguiremos atingir a arquitetura de início no programa em seu nível próprio e não subsidiário do mundo natural, seja técnico ou social, construindo a ordem artificial ao qual ele pertence.

A forma não vem a partir dos dados do problema como o contorno otimizado de equações. É evidente que as longas escadas de degraus altos do templo de Chichen Itza, não são ideais para atingir a altura, mas elas são arquitetura.

Por isto a lei de motivação, lei de mecânica de causa e efeito, a lei unideterminista não funcionam no mundo da arquitetura como arte, e por isso os fracassos permanentes e reiterados de escala mundial das Escolas de Arquitetura como a Bauhaus, de Alexander, dos metodologistas ingleses, etc. E pelo mesmo motivo o abandono do funcionalismo de Le Corbusier pelo mesmo, para atingir numa idade madura a plenitude da forma de arquiteto. Daqui vem a potência superior sempre as suas funções, das igrejas românicas, das mesquitas árabes, dos templos gregos.

Para cingir a proposição com sentido, o único método que eu conheço e uso, foi criado por Husserl (1859-1938) em sua Fenomenologia, o qual não irei desenvolver neste texto, mas sim quero fazer frente às criticas diminutivas, provenientes de pessoas que perambulam no campo das preocupações epistemológicas das ciências naturais (especificamente a física) que no campo da arte é muito fértil e “inerente” ainda confirmada nas afirmações de JH Van der Berg “Os poetas e os pintores são fenomenólogos naturais. “

B) A ENTELEQUIA

Aristóteles (384-322 aC) inventou o termo enteléquia e deu-lhe o escopo de ser o cumprimento de um processo cujo fim está na mesma entidade. (6)

Leibniz (1646-1716) o utilizou com o mesmo significado para identificar suas mônadas, mas o uso operacional na biologia foi feita por Driesch (1867-1941) para combater a redução da vida a uma explicação puramente físico-química, criando assim a chamada escola neovitalista, e daí foi assimilada por J. Von Uexküll (1864-1942), considerado como do grupo vitalista, mas bem sendo, na minha opinião, um kantiano consequente com a distinção do objeto sujeito, o que lhe permitiu construir o seu extraordinário e fértil “Unwelt” mundo circundante, que contribuiu com resultados em etologia (Lorenz, é seu discípulo) em psicologia e filosofia (Ortega, é um deles).

Uexküll descreve a enteléquia formulando o princípio que a caracteriza que é a conformidade com a lei, portanto, primeiro: o sistema vivo está em conformidade com a lei; segundo: esta lei só expressa a relação de parte a todo; terceiro: esta lei é capaz de governar os processos no organismo vivo. Esclarece que as leis da enteléquia não são causais. (7)

Esta não aceitação da explicação causal aparece frequentemente em pessoas que estudam a vida, como biólogos, historiadores e poetas, e podemos achar um reflexo disto nas palavras de Goethe: É que a primavera é a causa de verão?

Agora apresentarei a interpretação dos três princípios que caracterizam a Enteléquia da Biologia no campo da Arquitetura ou melhor no Programa Arquitetural.

A interpretação do primeiro princípio de conformidade com a lei do sistema é dada no programa, observando que o programa é um sistema de sistemas (sistema de circulação, sistema estrutural, sistema de iluminação, sistema de ventilação, sistema de construção, sistema de conexão, etc.), portanto, a conformidade com a lei opera em ambos os níveis, no nível dos sistemas e no nível do sistema de sistemas.

A interpretação do segundo princípio da enteléquia é a coisa mais importante a se considerar nos projetos. Como agimos com o total do corpo não deve nem pode ser entendida -como acontece muitas vezes- como uma subordinação da parte para o todo, senão que esta relação da parte ao todo deve ser entendida como uma resposta de cada parte como um todo.

Um projeto não é um organismo, é uma simbiose de estrutura e corpo, que se assemelha a um organismo na medida em que ele é usado pelo organismo humano, e a totalidade está presente em cada parte do projeto porque seu radical doador de sentido é o corpo humano, uno, unido e conexo.

Este segundo princípio do programa, como enteléquia do projeto, é o mais especificamente arquitetônico dos três. Este é o lugar onde ele difere de biologia e psicologia, pois precisa da intencionalidade própria do arquiteto para não fazer do projeto, nem um envoltório que como placenta iria abrigar o corpo humano biológico, nem uma projeção do corpo humano configurado com seu tato e os seus sentidos a envolvente (psicologia), porque a arquitetura não se identifica com a ordem natural, porque a arquitetura é uma Ordem Artificial, pertence ao mundo simbólico da arte, porque ela pertence ao mundo da memória nervosa, como diria Jacob (8), e não para o mundo da memória genética e vive aquele risco que é a liberdade e a transcendência.

A interpretação do terceiro princípio da enteléquia no programa arquitetônico é entendida como segue: o programa deve refletir sinteticamente as múltiplas configurações geradas pelos atos a serem realizados; de tal forma que sejam logicamente consistentes, ou seja, que não gerem contradições para permitir o desenvolvimento efetivo dos processos que são cumpridos no projeto.

Neste terceiro princípio da enteléquia se torna visível a indicação de Borchers, o programa tem figura de tempo, porque é da natureza do Ato, que recolhe o programa para transmiti-lo ao projeto.

Logo, o programa arquitetural entendido como Enteléquia do Projeto terá que cumprir estes três princípios que resumindo são:

1. Cada sistema envolvido no projeto deve reger-se por um princípio que o envolva na sua totalidade e o sistema que circunscreve estes sistemas diferentes também deve reger-se por um princípio próprio.

2. Cada parte do projeto deve responder como um todo, explicando um pouco mais, quero dizer que nem cada parte tenha tudo, mas que cada parte deverá possuir a qualidade arquitetônica que não a faça ser intermediária, mas ser em si mesma.

Um exemplo comparativo pode explicitar melhor o que eu digo: a escadaria da Biblioteca Nacional de Madri é uma parte para se chegar a outra parte e assim por diante, é um intermediário. Por outro lado, a escadaria da Pinacoteca de Viena é algo em si, portanto é arquitetura quer você goste ou não da sua ornamentação, sua proporção, suas cores, sua iluminação.

3. O projeto é “executado” no tempo e não no espaço, por tanto existe um processo dos atos que acontecem lá. Esses atos pertencem a uma combinatória que se desdobrará ao longo da vida do projeto, e o programa deve logicamente articular “aquele lugar”, essa “matriz” para acolher sem contradição as múltiplas configurações que serão apresentadas por mudanças no uso e destino.

Um exemplo comparativo, o Museu da América na cidade universitária, já de início, não governa o processo museológico para o qual foi previsto, no entanto, o Museu do Prado mudou seu destino para ser utilizado como Pinacoteca e apesar de muitos erros graves da direção do museu, contrariando, por exemplo, as linhas eulerianas do plano, resiste à organização de Villanueva e mantém o controle do processo.

NOTAS

1. Borchers, Juan. “Institución Arquitectónica”, Ed. Andrés Bello, 1968. Pag. 151

2. Borchers, Juan. “Institución Arquitectónica”, Ed. Andrés Bello, 1968. Capítulo “Cosa general”

3. A capacidade de questionar liminarmente seus passos dá à lógica um poder “fértil” no desenvolvimento artístico. Como em geral, a geometria é o lugar de todas as configurações possíveis, pode-se dizer que a lógica é o lugar de todas as manobras possíveis (um belo exemplo é a dedução natural de Gentzen). Exemplos dessa fertilidade lógica são percebidos, entre outros, pelos seguintes artistas: Lautréamont, Pollock, Ucello, Herrera, Chopin, Picasso, Schoemberg, Coducci.

4. “Sinn Und Bedeutung” de Frege, que é um pequeno clássico da literatura mundial. Existem várias traduções para espanhol, italiano e francês. Discordo da interpretação de Alonso Church sobre essa distinção (de sentido e significado).

5. O positivismo tardio que inclui quase todos esses metodólogos, é insuficiente para dar operabilidade artística aos seus métodos, porque eles não percebem o firme esclarecimento de Borchers: “arquitetura não possui linguagem simbólica, como no caso da música”. Assim, a matematização da arquitetura não é possível simplesmente se a linguagem simbólica não é construída antes. O erro dos antigos ou novos acadêmicos (sejam palladianos, sejam lecorbusieranos, sejam tendenciosos, sejam neoclássicos, estes ultimo influenciados por historiadores da arte) parte da crença de que as regras da academia constituem uma linguagem simbólica. As “birras” de um Venturi, os planos pictóricos de um Graves, são tentativas de reação a essa confusão, saudáveis, mas completamente insuficientes.

A normatividade do tipo “engenharia” das academias já foi denunciada por Borchers em várias das suas obras e é um dos pontos do erro conceitual de Le Corbusier, o qual contrapõe a engenharia à academia (verdade técnica contra composição decorativa) escorregando sobre o problema de fundo que caracteriza cada academia.

6. Ou talvez ainda mais enfaticamente a definição do Dicionário da Língua Espanhola, (19ª), 1970: “coisa real que carrega em si o princípio de sua ação e que tende por si só a seu próprio fim”.

7. Essa conformidade com a lei – de acordo com o mesmo Uexkull esclarece – é como a melodia de uma música, aquela que impulsiona o jogo do som.

8. Jacob, François. “La Lógica de lo Viviente”, Editorial Universitaria, Santiago de Chile, 1973.


Link para o artigo original, em espanhol:

Cuadernos de Arquitectura – Habitar el Norte, N° 3, 1992, pag. 10-18. Editorial Universidad Católica del Norte, Antofagasta, Chile. ISSN: 0717-053X.

https://revistas.ucn.cl/index.php/arquitectura/article/view/3058/2870

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